terça-feira, 6 de dezembro de 2016

As nuvens me abraçam

Estou na varanda do meu apartamento em Guaramiranga, no alto do maciço de Baturité. À frente desfruto da paisagem das montanhas, num horizonte bem distante. É impressionante o degradé verde, que se forma, movido pela luz do sol. Ele rompe a atmosfera e esbarra no filtro de nuvens até chegar a nossa retina numa incomparável demência de prazeres.

A manhã é extremamente dinâmica aqui na serra. Ela é impressionista, no verdadeiro sentido da palavra, que identifica um dos mais belos movimentos artísticos que tem como grande expoente Vincent van Gogh na pintura e Claude Debussy na musica. Me sinto hipnotizado pelas suas obras e quando as ouço ou as vejo é como se estivesse no paraíso. Loucuras que mudaram os caminhos na arte e nos permitiram descrever as nuances do tempo e da luz com um toque de magia nunca antes experimentado.

Olho para a paisagem longínqua da serra e me depuro de todas as contaminações que trago da cidade.
No início da manhã o sol estava coberto por uma densa neblina que escondia tudo que estivesse a mais de cem metros. Era extasiante poder desfrutar dessa beleza, com os primeiros raios de sol lutando para romper a barreira das nuvens. E eu ali sem ação, buscava contemplar o infinito, mesmo que dele não tivesse a visão. A gente vai escolhendo os detalhes e de repente surge algo infinitamente belo à sua frente, com se nunca estivesse estado ali. São detalhes que a vista alcança a medida que sua mente vai se libertando dos pensamentos que te aprisionam. E você então vê uma arvore solitária no meio da paisagem e se confunde com ela. Seu tronco e seus galhos, esquálidos, rompe a atmosfera e se destaca ante toda a neblina que esconde a paisagem. Quase não tem folhas, mas está ali, guerreira, falando como se fosse uma espada rompendo a incerteza.

As nuvens invadem o ambiente denso da neblina e passam rente ao meu olhar. É como se viessem me abraçar e dar boas vindas ao novo dia. Elas são como flocos que se deslocam com a velocidade do vento. Flocos frios que impedem os primeiros raios de sol de aquecerem o ambiente. A gente nunca imagina que pode estar nas nuvens sem ser dentro de um avião. E naquele instante eu estava e me inebriava aquela maravilha da natureza. Era como se elas estivessem a me trazer mensagens das pessoas amadas que já se foram e me dar uma boa notícia. A gente nunca esquece os detalhes que nos enriqueceram em companhia de daqueles que nos trouxeram a paz. Naquele momento eu lembrava do meu irmão, que de forma prematura se foi mas que habitava um espaço-tempo diferente de todos nós. Mesmo lúcido ele se integrava e se entregava completamente àquela natureza exuberante da serra. E assim ele ficava horas e horas a me contar a história de cada planta que plantara e de cada fruto que colhera. Era como se aquela história fosse a sua própria história. Ele se alimentava dessa contemplação e com ela elevava nossa alma. Era ele que me abraçava, naque instante, através daquelas nuvens. Elas vinham, passavam e iam-se. Mas a mensagem ficava. E quando o sol conseguia, numa pequena resta, romper a barreira da neblina, era como se o seu doce olhar me cumulasse de bençãos.

As horas vão passando e a paisagem magicamente mudando com o sol vencendo aquela neblina. As cores ficam mais intensas e os detalhes mais visíveis. Agora eu posso ver distante, até a ultima serra e o colorido degradé e intensamente extasiante. Os detalhes estão mais intensos e os passarinhos começa a esvoaçar de galho em galho. Uma festa para quem contempla tamanha beleza. Podemos sorver toda essa intensidade como se estivéssemos degustando a melhor safra de um Pinot Noir. A essência da natureza invade nosso olfato como se estivéssemos aptos a sorver o primeiro gole de vinho. Sorvemos toda essa maravilha embalados pelo canto da Sabiá.

Logo chega o jardineiro na sua moto e calçando havaianas. Ele também tem "whatsapp" e sempre me manda mensagens. Agora mesmo ele me mandou uma mensagem da "Força Chape". Como esse povo é ligado a catástrofes. Não perdem um só detalhe e são virais. Comentam tudo como grandes conhecedores e praticam atos como se estivessem vivendo a tragédia. Afinal eles são objetos da mídia do apocalipse que toma conta de toda a imprensa e aprisionam esse pobres ignorantes que não contemplam o canto da Sabiá nem são abraçados pelas nuvens. Mesmo vivendo esta realidade como nativos. Esses fatos da natures se fazem tão comuns que se transformam em anônimos e disso aproveita-se a mídia catastrófica. Conversando com eles, te colocam a par de todos os acontecimentos do momento. Sabem da corrupção do País e da violência que toma conta de todos os recantos, os mais recônditos. O vigilante noturno me disse que não perde um noticiário. E ele é atento aos seus direitos trabalhistas, como se não houvesse deveres. Com o celular eles praticam como nunca o habito de matar o tempo, e isso em prejuízo do trabalho que nunca rende. É fácil perceber a diferença de um operário brasileiro para um americano. Basta velos usando o celular. Aqueles nunca o fazem durante suas horas de responsabilidade produtiva.

A Sabiá inicia seu longo cantar. É como se fosse um lamento, um sopro de sofrimento. Mas somente isso o pássaro livre tem a natureza primordial a seu favor e completa essa harmonia com o seu cantar. Eles estão na arvore à frente da minha varanda e eu posso observa-los. E também conversar com eles. Temos a linguagem universal que toda a criação entende; o amor. Aqui sentado fico a pensar nesses pequenos seres tão cheios de vida e alegria. Eles pulam de galho em galho completamente impacientas com o instante que se foi e o que virá. Bicam sementes que vão brotar em outras paisagens, quando execradas num solo fértil, regadas pela chuva e iluminadas pelo sol. Converso com eles e peço-lhes o dom de voar. Não voar como eles, é obvio, mas voar em pensamentos para os mais longínquos recantos cósmicos. 


Contemplo a natureza. Ela é bela! É uma manhã de sábado e estou sentado na minha varanda do condomínio Monte Verde, na Serra de Guaramiranga. São cinco e meia da manhã e a serra ainda dorme para os visitantes.  Os nativos já estão acordados, uns desde as quatro. Cuidam dos seus afazeres domésticos antes de seguirem para o trabalho no campo. Hoje, a Serra de Guaramiranga é um canteiro de obras e avolumam-se os empreendimentos, mesmo proibidos que são pela SEMACE; Companhia que cuida e controla a utilização adequada do meio ambiente no Ceará. Diz-se cuida, mas como tudo no Brasil, sempre tem um jeitinho de burlar a lei e construir Condomínios Residenciais, tipo o que estou. Aqui, para conseguir o alvará, foi usado o pretexto da construção de uma Pousada, o que não é verdade. Mesmo assim podemos contar com a preservação de 90% da área do Condomínio, o que já nos dá uma certa tranquilidade, mesmo vendo a intensidade do desmatamento em outras áreas.

Os operários, um a um, estão chegando nas suas motos. Um ruido que incomoda e nos aproxima do caos das cidades. Hoje até pequenos lugarejos do interior do Ceará estão completamente tomados por essa praga. Param sus maquinas em baixo da mangueira. A mangueira ainda é a arvore que oferece mais sombra nessa região.
Os operários chegam as sete da manhã, mas trabalho que é bom só lá pelas nove. Antes, cada um vai contar seus "causos" e entre uma e outra conversa haja celular. Devagarinho cada um toma sua ferramenta de trabalho e se encaminha para o serviço a ser executado. Sem pressa. Hoje o jardineiro colocou no carrinho de mão uma pá de entulho e somente isso o dia todo. O outro fincou sete varas pra fazer a cerca e parou pra almoçar. O trator que ia preparar o solo para o estacionamento não moveu mais que vinte e cinco metros quadrados. E assim vai o dia todo com rendimento baixíssimo. A indolência faz com que tenhamos uma das mais caras mão de obra do mundo. E haja reclamação quando encontra alguém para ouvir suas ladainhas.

Chegou o caminhão carregado com brita, mas as formas do concreto ainda nem foram iniciadas. A brita chega antes da madeira para formas e escoramento. O cronograma de pagamento vai ter que antecipar essa despesa que poderia ter sido prorrogada por no mínimo quinze dias. Isso pouco importa. Alguém está ganhando com esse erro e alguém está perdendo. Como pode alguém progredir com tanta desorganização. A brita é jogada no chão e simplesmente uma parte será perdida quando for usada. As onze horas tudo para. É hora do almoço. Até então nada foi iniciado e finda o dia as dezesseis horas sem que nada se produza. As maquinas roncam seus motores. Fim de mais um dia onde nada se produziu.
Sentado na varanda a observar penso no meu dinheiro ou no lucro do construtor que está indo pelo ralo.
Todos perdem, menos o empreiteiro com sua Toyota do ano e de quebra um caminhão novo. Vou visitar a casa desse camarada.

Resolvo voltar a minha contemplação da natureza. Esse momento ocupado com o movimento dos operário me perturbou e me trouxe de volta ao urbano. Não gosto! Passei sessenta e cinco anos da minha vida preparando esse momento é agora quero usufruir o máximo dele. Então relaxo e olho para a árvore à minha frente. Não é aquela arvore que sempre sonhamos ver. É um tanto quanto deprimida. Pouca folhagem, galhos secos se destacando na sua copa, pode-se dizer que não tem nenhum atrativo natural. Mas é a única árvore que foi preservada da mata nativa em frente a minha varanda e com isso sinto-me um privilegiado. Ela deve ter muito o que contar, inclusive do passado, quando disputava o espaço com outras árvores. O destino quis que ela fosse preservada e eis ai sua importância. A escolha é um processo quase que incompreensível, pois coloca elementos desconhecidos no processo que se estende desde a origem, até  o instante vivido. Aquela fração que faz com que uma escolha transforme toda uma existência. A importância desse momento deveria ser medido e pesado nas consequências futuras que ele vai causar. E aquela árvore foi preservada e ela passou a um grau de importância antes inexistente porque ela agora é única. E na sua unicidade ela reina soberana. Não importa sua forma ou seu estado, ela está ali para marcar uma nova história que vai se somar a tantas outras pela qual já passou. Fico a refletir que se ela tivesse um coração, ele estaria batendo intensamente. Assim deve ser o seu cerne, desprovido de água mas com suas células latentes, com a seiva que corre pelo sistema vascular do seu tronco, nutrindo todo o seu sistema vital. Proporcionando a flora e a frutificação que irão perpetuar-lhe a espécie.

Logo um pequeno pássaro amarelo pousa. Mais parece um pequeno Bem-Ti-Vi que não canta. Simplesmente ele pousa no galho mais seco. Mais próximo à minha varanda, à minha visão. Com certeza ele também sente a curiosidade de ver o que se passa para depois tomar atitudes. Sua visão é seletiva pois tem a capacidade de ver a luz ultravioleta, invisível ao ser humano. Isso ressalta o colorido que fica mais intenso e permite que ele possa observar com mais detalhes os objetos, principalmente seus ovos que nunca serão confundidos. O passarinho olha com rapidez todos os detalhes e rapidamente toma sua decisão. Bem próximo existem suculentas sementes. Um manjar dos deuses passarinhos. Pula do galhinho seco para a área mais densa da árvore onde as suculentas sementes encontram-se em meio da flora. Seguem-se outro e mais outro, e muito chegam. Mias de cinco. Algum pio inaudível deve ter chegado ao grupo, anunciando que ali poderiam se refastelar com gula. A natureza é divinamente providente. Ela oferece o alimento que mais tarde será excretado em solo fértil e dali vai nascer uma nova árvore. O passarinho amarelo, sem nenhum canto audível logo se farta e alça seu voo a nova emoções. É seguido por todos.

Fico a me perguntar porque a natureza faz suas escolhas de forma tão equilibrada e sem censura. Tudo sempre está no seu devido lugar para servir de presa ou predador, mas sempre em busca do equilíbrio. Não existe o passarinho assassino e violento, nem o animal vingativo. Todos convivem em equilíbrio e se respeitam. E claro que os mais fracos sempre são presa e nem por isso os condenamos. Hoje a Leda colheu no numa área de mato uns tomates cereja belíssimos. Totalmente orgânicos e que nasceram no acaso criado por um operário que jogou as sementes sem nenhuma intenção. Chegou exultante com a descoberta e logo foi temperá-los para servir de tira-gosto ao excelente Pinot Noir que estávamos sorvendo, no cair da tarde, quando já corre com frescor um ventinho frio na serra. Aqueles tomates cereja foram um achado e chegaram em muito boa hora. Ao abri-los em banda, ela percebeu que em alguns tinha uma pequena lagarta branquinha. Aquele achado confirmava a origem orgânica sem nenhum agrotóxico. É assim que a natureza se sustenta, num equilíbrio total, quebrado pela ganância do ser humano em lucrar mais e mais. Essa ganância, que quebra o ecossistema, está causando um dos maiores prejuízos na Carcinicultura mundial, com o aparecimento da praga que se chama "mancha branca". Simplesmente buscando produzir mais, os carcinicultores aumentaram a população de camarões nos viveiros e os tornaram mais frágeis, o que causou a instalação do vírus e a grande mortandade. De repente a produção no Ceará caiu em 50% e o preço está batendo o da Lagosta que sempre foi um crustáceo mais nobre e mais caro. Há de se perguntar: por que tanta incompetência e tanta ganancia? Por que o ser humano destrói o equilíbrio da natureza  em troca de mais lucratividade pessoal? Fico a imaginar observando o passarinho amarelo que retornou com o seu bando.

O noite cai e se inicia o coaxar dos sapos. É um canto intermitente e belo, feito um trinado de canário, que se repete todas as noites. Contrastam em intensidade com as estrelas que hoje estão mais presentes que os outros dias. Alás, Canário é uma ave que foi exterminada da serra faz tempos e agora só resta a lembrança no coaxar dos sapos. Era preciso uma área de preservação ambiental para que se resgatasse toda a fauna e toda a flora exuberante do Maciço de Baturité, que aos poucos vem sendo exterminado pela sana dos empreendimentos imobiliários.
A noite estrelada é como um espelho que reflete e transforma a luz que vem da terra em luz branca. Contemplando essa magia do cantar dos sapos na noite e do refletir a alma na iluminação estelar, sinto-me deslumbrado e por momentos saio a voar em pensamentos, pelas correntes de vento, no frio da noite onde se escondem os mistérios da imaginação dos nativos, com seus medos e superstições. Feito pássaro passeio por todos os recantos em busca do manto que cobre a luz do sol. É magico o cair da noite na serra. Uma pausa que se faz e refaz todas as energias para ingressar na aurora que se prenuncia. Quando o dia vai amanhecendo e os primeiros raios de sol nem sequer ainda penetraram o véu da madrugada, a sabiá canta o seu lamento num cantar que mais lembra uma despedida.

Pegamos a estrada antes do almoço pois pretendíamos almoçar no caminho. A estrada que liga Guaramiranga a Campos Belo é lindíssima. Completamente diferente da que liga a Baturité que tem o verde como principal atrativo.